É inconstitucional lei estadual que impõe às montadoras, concessionárias e importadoras de veículos a obrigação de fornecer veículo reserva a clientes cujo automóvel fique inabilitado por mais de quinze dias por falta de peças originais ou por impossibilidade de realização do serviço, durante o período de garantia contratual.
Com esse entendimento, o Plenário, por maioria, julgou procedente pedido formulado em ação direta e declarou a inconstitucionalidade da Lei pernambucana 15.304/2014, em sua integralidade.
Prevaleceu o voto do ministro Roberto Barroso (relator), exclusivamente, pela existência de vício formal de competência. A seu ver, há inconstitucionalidade orgânica na lei pernambucana, por extrapolar competência concorrente para legislar sobre matéria de consumo. Da interpretação sistemática da Constituição Federal, extraem-se balizas impostas ao legislador estadual para a elaboração de normas consumeristas.
O ministro Ricardo Lewandowski acompanhou o entendimento pela inconstitucionalidade formal e salientou que o Estado-membro estaria legislando em matéria de Direito Civil, ou seja, contratual, e invadindo a esfera privativa da União.
Além do vício formal de extrapolação de competência concorrente, o relator considerou existir violação aos princípios da isonomia, da livre iniciativa e da livre concorrência.
O Plenário iniciou julgamento conjunto de arguição de descumprimento de preceito fundamental e de recurso extraordinário (Tema 967) nos quais se discute a constitucionalidade de legislação municipal que proíbe o uso de carros particulares, cadastrados ou não em aplicativos, para o transporte remunerado individual de pessoas.
Na arguição de descumprimento de preceito fundamental, de relatoria do ministro Luiz Fux, são impugnados os arts. 1º e 2º da Lei 10.553/2016 do município de Fortaleza, os quais proíbem o uso de carros particulares, cadastrados ou não em aplicativos, para o transporte remunerado individual de pessoas.
Já no recurso extraordinário, de relatoria do ministro Roberto Barroso, é impugnado acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que declarou a inconstitucionalidade da Lei municipal 16.279/2015, a qual proíbe o uso de carros particulares cadastrados em aplicativos para o transporte remunerado individual de pessoas.
Os ministros Roberto Barroso e Luiz Fux negaram provimento ao recurso extraordinário e julgaram procedente a arguição de descumprimento de preceito fundamental para assentar a inconstitucionalidade dos atos normativos em questão.
O ministro Luiz Fux afirmou que o motorista particular, em sua atividade laboral, é protegido pela liberdade fundamental prevista no art. 5º, XIII (1), da Constituição Federal, submetendo-se apenas à regulação proporcionalmente definida em lei federal. Nessa senda, o art. 3º, VIII (2), da Lei 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) e a Lei 12.587/2012 garantem a operação, por aplicativo, de serviços remunerados de transporte de passageiros.
A liberdade de iniciativa, garantida pelos arts. 1º, IV, e 170 (3), da Constituição, consubstancia cláusula de proteção, destacada no ordenamento pátrio, como fundamento da República. Por isso, não pode ser amesquinhada para afastar ou restringir injustificadamente o controle judicial dos atos normativos que afrontem as liberdades econômicas básicas.
Nessa linha, o constitucionalismo moderno fundamenta-se na necessidade de restrição do poder estatal sobre o funcionamento da economia de mercado, sobrepondo o rule of law a iniciativas autoritárias destinadas a concentrar privilégios, a impor o monopólio dos meios de produção ou a estabelecer salários, preços e padrões arbitrários de qualidade, todos a gerar ambiente hostil à competição, à inovação, ao progresso e à distribuição de riquezas.
O processo político por meio do qual as regulações são editadas é frequentemente capturado por grupos de poder interessados em obter proveitos superiores aos que seriam possíveis em um ambiente de livre competição. Um recurso político comumente utilizado por esses grupos é o poder estatal de controle de entrada de novos competidores em um dado mercado, a fim de concentrar benefícios em prol de poucos e dispensar prejuízos por toda sociedade.
Assim, o exercício de atividades econômicas e profissionais por particulares deve ser protegido da coerção arbitrária por parte do Estado. Compete ao Poder Judiciário, à luz do sistema de freios e contrapesos, invalidar atos normativos que estabeleçam restrições desproporcionais à livre iniciativa e à liberdade profissional, na linha do que decidido no RE 414.426 e no RE 411.961.
Eventuais restrições devem ser informadas por parâmetros constitucionalmente legítimos e adequar-se ao teste da proporcionalidade, com o ônus de justificação regulatória baseada em elementos empíricos que demonstrem os requisitos dessa intervenção estatal no domínio econômico.
As normas que proíbem o uso de carros particulares, cadastrados ou não em aplicativos, para o transporte remunerado individual de pessoas, configuram limitação desproporcional às liberdades de iniciativa (CF, arts. 1º, IV, e 170) e de profissão (CF, art. 5º, XIII). Tal limitação, ademais, provoca restrição oligopolista do mercado em benefício de certo grupo e em detrimento da coletividade.
Outrossim, a proibição legal do livre exercício profissional do transporte individual remunerado afronta o princípio da busca pelo pleno emprego, que está consagrado como princípio setorial no art. 170, VIII, da CF, na medida em que impede a abertura do mercado a novos entrantes eventualmente interessados em migrar para a atividade.
A Constituição impõe ao regulador, mesmo na tarefa de ordenação das cidades, a opção pela medida sem restrições injustificáveis às liberdades fundamentais de iniciativa e de exercício profissional. A necessidade de aperfeiçoar o uso das vias públicas não autoriza a criação de oligopólio prejudicial a consumidores e a potenciais prestadores de serviço do setor, notadamente quando há alternativas conhecidas para o atingimento da mesma finalidade.
Igualmente, haja vista a evidente fluidez do trânsito gerada pelos aplicativos de transporte, torna-se patente que essa proibição nega ao cidadão, também, o direito à mobilidade urbana eficiente.
Segundo o ministro Roberto Barroso, vivemos um ciclo próprio do desenvolvimento capitalista, em que há a substituição de velhas tecnologias e velhos modos de produção por novas formas de produção, num processo chamado de inovação disruptiva, por designar ideias capazes de enfraquecer ou substituir indústrias, empresas ou produtos estabelecidos no mercado.
Nesse cenário, é muito fácil perceber o tipo de conflito entre os detentores dessas novas tecnologias disruptivas e os agentes tradicionais do mercado: players já estabelecidos em seus mercados, por vezes monopolistas, são ameaçados por atores que se aproveitam das lacunas de regulamentação de novas atividades para a obtenção de vantagens competitivas, sejam elas regulatórias ou tributárias.
A melhor forma de o Estado lidar com essas inovações e, eventualmente, com a destruição criativa da velha ordem, não é impedir o progresso, mas, sim, tentar produzir as vias conciliatórias possíveis.
O ministro Barroso destacou os três fundamentos pelos quais considerou inconstitucionais os atos normativos impugnados.
Em primeiro lugar, a Constituição estabelece, como princípio, a livre iniciativa. Nessa medida, a lei não pode arbitrariamente retirar determinada atividade econômica da liberdade de empreender das pessoas, salvo se fundamento constitucional autorizar a restrição imposta. A edição de leis ou atos normativos proibitivos, pautada na exclusividade do modelo de exploração por táxis, não se amolda ao regime constitucional da livre iniciativa.
Em segundo lugar, a livre iniciativa significa livre concorrência. A opção pela economia de mercado baseia-se na crença de que a competição entre os agentes econômicos e a liberdade de escolha dos consumidores produzirão os melhores resultados sociais.
Por fim, mostra-se legítima a intervenção do Estado, mesmo em um regime de livre iniciativa, para coibir falhas de mercado e para proteger o consumidor. Entretanto, são inconstitucionais a edição de regulamentos e o exercício de fiscalização que, na prática, inviabilizem determinada atividade. A competência autorizada por lei para os municípios regulamentarem e fiscalizarem essa atividade não pode ser uma competência para, de maneira sub-reptícia ou implícita, interditar, na prática, a prestação desse serviço.
Posteriormente ao ajuizamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental e à interposição do recurso extraordinário houve o advento Lei 13.640/2018, que alterou a Lei de Mobilidade Urbana.
Essa norma prevê a existência de duas situações distintas e de maneira expressa: i) o transporte público individual oferecido pelo sistema tradicional de táxis; e ii) o transporte remunerado individual privado. Outrossim, a referida lei atribuiu expressamente aos municípios e ao Distrito Federal a competência para a fiscalização e a regulamentação desses serviços.
A Lei 13.640/2018 estabeleceu os parâmetros para a prestação do serviço privado de transporte de pessoas: a) a cobrança de tributos pela prestação de serviços; b) a contratação de seguro de acidentes pessoais a passageiros e do seguro obrigatório; c) a inscrição do motorista como contribuinte individual do INSS; d) a exigência de habilitação para dirigir; e) o atendimento dos requisitos de idade e características do veículo; f) a manutenção do Certificado de Registro e Licenciamento do Veículo; e g) a apresentação de certidão negativa de antecedentes criminais dos motoristas.
Como se vê, a legislação federal cuida exclusivamente de regulação da qualidade e da informação. Por essa razão, a partir da opção regulatória estabelecida para o setor, extrai-se a impossibilidade de se criarem barreiras de entrada e controle de preços para o transporte individual privado por aplicativos.
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